3.

Estava indeciso. Não sabia se queria ir trabalhar. Precisava de férias. Dois ou três dias bastavam. Na praia ou em qualquer sito em que se misturasse na multidão e se isolasse dela.
(Alerta-se o leitor para as contradições de Vasco. É um eterno solitário que simultaneamente procura companhia e se isola dela, com tédio. Alimenta a dor de se sentir só e afasta-se de tudo e de todos, entrando num ciclo paranóico de aproximação e de fuga. A necessidade de se isolar é genuína. Sabemos já que é um cobarde, no dia a dia, na informalidade com os amigos, quase os não olha de frente, mas na labuta do trabalho, chega a ser incomodativa a persistência do seu olhar, durante uma discussão ou numa simples reunião. Ele acha-se um esquizofrénico, por isso alimenta a multiplicidade de eus, como quem abre e fecha uma gaveta, num processo de alienação simples e eficaz…cá para nós que o vemos por dentro e por fora, uma esponja que absorve as várias facetas as mil verdades, dependendo de como as olha. Para terem a certeza do que vos digo tomo a liberdade de transcrever o que Vasco escreveu antes de se deitar no seu caderno de apontamentos…
… “Quem se ilude que há uma só verdade, perdeu o ponto. A vista. Ela está em cada reflexo, em cada olhar em que se Acredita!
A Verdade existe em cada um que a ACREDITA.
A Única, a UNA, essa é intensa e cega, não se olha de frente, porque Todos não a conseguem olhar do mesmo Ponto, e cada um sabe-a, desde que a Sinta”…

Mas deixemos o Vasco decidir os passos. Os remorsos impeliram-no para o trabalho e é aí que retomamos o fio da «estória»… )

Deixara o carro na garagem e subia lento a rampa. Raramente saía pela porta. Utilizava amiúde a rampa de subida reservada ás viaturas.
( infância irrequieta, diria eu que o observo desde que nasceu. Não era só não ligar ás normas, gostava de as contrariar, como que a guerrilhar-se a si próprio, numa tentativa permanente de esconder o medo paralisante que lhe inibiam a ousadia, voluntária e espontânea . A quebra das pequenas regras faziam-no acreditar que era diferente, que não era marioneta e que imprimia sentido aos passos. Ia ao extremo de treinar insistentemente, escrever ou desenhar, com a mão esquerda. Os progressos diários faziam-no sorrir, e em escassos instantes sentia uma profunda felicidade e um imensurável triunfo sobre si próprio.)
...Há dois anos, desde as ultimas eleições autárquicas que deixara de ir directo ao gabinete do presidente da Câmara, A presidência mudara e não sentia pelo actual presidente nem simpatia nem empatia. Não lhe reconhecia autoridade porque sentia pura e simplesmente que não a tinha. Tinha saudades das conversas e do trabalho que desenvolvera com Aníbal, Aníbal Santos, um independente elitista com dotes populares que possuía uma invejável inteligência prática. Teimoso no limiar do insuportável conseguia implementar as suas ideias com uma oposição velada a conspirar invejas, no partido que o apoiara e fora dele. Politico puro que sabia entusiasmar a sua equipa de trabalho, escolhida a dedo, como quem constrói um exército à medida de cada missão. Terminada a missão, outra equipa surgia. Frio, pragmático, era um general que construía a sua cidade, ao seu gosto e à sua vontade. Poucos gostavam dele. Vasco gostava, mesmo não concordando com ele, mas o facto de se sentir parte de uma equipa empreendedora, compensava os desencontros. Actualmente os desencontros eram outros e esses sim magoavam-no e liquidavam a seu enorme voluntarismo para a causa pública. Não tolerava indecisos…
( para isso bastava o combate diário e implacável que desenvolvia no seu íntimo. Já era desgastante contrariar a suas mil indecisões, quanto mais esbarrar com alguém que mostrava uma incapacidade notória para filtrar essas indecisões.)

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