1.

Levantou-se, com a lentidão da memória que insistia em sonambular por sonhos inacabados. Custava-lhe abrir os olhos, mesmo na penumbra de um quarto que o embalava desde menino…
(Caro leitor, o narrador, é um chato. Considere isto um aviso prévio antes de deambular pela história. É um intrometido. Insiste em começar uma história com um acordar…mania tonta, quase infantil, mais valia o tradicional «era uma vez», mas não, apanha o personagem ainda estremunhado e invade-lhe a intimidade, entra nele e nunca mais o larga).
…desde que se lembra que se recusa a acordar. Gosta da lentidão do olhar, de se sentir entre fronteiras, e não pertencer a qualquer dos lados. Cobarde? Sim! Assumidamente cobarde, O que o salva é a vergonha, Não fosse ela, e seria um ser desprezível. Não a vergonha dos outros, Estava-se nas tintas para os outros, mas a que ele sentia dentro do peito a doer-lhe como agulhas finas a trespassarem-lhe o sabugo das unhas. Não gostava do espelho! Raramente sorria quando se olhava reflectido. Era um estranho, Não ele, mas o que se duplicava invertido. Um e outro divergiam, como se um, fosse o fantasma esquizofrénico do outro. Para fugir desta espécie de sombra que o perseguia à velocidade dos passos, Vasco tinha o hábito de se compartimentar em «pedaços de eus» vagueantes e difusos. Só ele conhecia a chave que os aglutinava…
(O personagem tenta fugir ao narrador e surpreendê-lo com confissões pouco coerentes. Deixemos por agora que ele desperte do sono, que acorde. Criemos a ilusão que é ele que abre a janela e que não é a história que a abre …
…mas afinal quantos narradores tem este enredo? Ou não há enredo algum e aguardam um e outro que a história se diga sem interferências de terceiros?)
…Vasco ainda mal acordou, dirige-se molengo ao frigorifico para se refrescar da noite quente que se lhe colou á pele e que só um copo de leite gelado a descola. Dói-lhe a cabeça, Passou a noite em pensamentos inconsequentes, imagens desconexas que não lhe indicavam solução nenhuma para a sua vida que de um momento para o outro se complicara e se afunilava na indecisão. Tinha quarenta e cinco anos, sempre trabalhou por gosto sem pensar em futuros, pois era o dia a dia que o entusiasmava. Engenheiro-Gestor, estava habituado a ser criativo e a motivar os seus colaboradores, numa competitividade sã, numa labuta em que se divertiam ao ponto de se esquecerem de almoçar ou jantar. Mas tudo mudara de um momento para o outro, como se uma onda tivesse surgido do mar calmo sem razão aparente nem sinais outros que dessem o alerta. Sentia o seu mundo desmoronar. Porque razão o abanavam assim? Sempre tivera bom senso, sempre encarara a vida com serenidade, porque desabava agora tudo debaixo dos seus pés? Logo agora que ele tinha decidido abrandar, logo agora que começara a olhar um pouco para ele, era empurrado para um abismo sem fim, sem sequer darem-lhe tempo para colocar um pára-quedas ? Onde iria ele cair? Como lhe doía a cabeça. Sempre as malditas dores de cabeça a obrigá-lo a sentir o corpo. Raios partissem o corpo todo de vez só. Arrancados os olhos e tudo seria mais calmo. Sem cor é certo, mas mais calmo.
Apertava a gravata, de cor só , lisa , discreta. Escura. Azul quase sempre. Ainda «sonolava,» mas já sentia o dia a respirar. Ainda estava á procura das chaves e já se sentia no caminho. O mesmo caminho de vinte anos numa ida e vinda rotineira, vezes de comboio, quase sempre de carro. Gostava desse momento. Era o seu momento. Era a parte do dia que era só dele. Trabalhava numa cidade costeira, dormia noutra rodeada de serras. Gostava de ambas e detestava-as em igual medida. Quando estava na sua cidade de trabalho só pensava na ida. Na serrana o mesmo. Estivesse onde estivesse era um insatisfeito irrequieto. Não tinha raízes por isso se sentia livre de amar e de odiar a seu belo prazer, os sítios que pisava. O pai chamava-lhe vagabundo. Ele sentia-se um tuaregue cosmopolita. Alimentava um impulso constante para a fuga, escondida numa necessidade doentia da descoberta. ( quantas vezes visitava uma cidade só da janela do hotel? E no entanto, ali defronte da cidade-nova tinha a sensação clara que ia em descoberta de novos cheiros, de novas gentes . Vezes havia que andava pelas ruas até se cansar, até não saber voltar, só para ter a sensação de se sentir perdido e de mergulhar na aventura de encontrar o seu caminho. Fazia isso em tudo na vida…provocar a sensação de descoberta, mesmo das coisas mais simples…era assim que se maravilhava…
( Muito bonito sim senhor, mas por isso, atrofiava a memória, qualquer dia é obrigado a descobrir como se respira…já faltou mais, e quando isso acontecer, adeus Vasco, ficarás preso na tua própria teia, trucidado pela estúpida obsessão de quereres inventar o mundo)
…mas afinal o que é que pretendes contar…as confissões de Vasco? Isso tem algum interesse? Como é que a história de alguém que se julga um tuaregue solitário, a viver num cidade de província pode ter interesse algum? Nem para o próprio!)
( Vamos lá a ver se nos entendemos, ó narrador de tigela inteira, ou contas tu ou conto eu. Os dois é que não dá. O Vasco é coisa minha, a história dele é coisa tua, limita-te a contá-la. Deixa que ela seja o teu próprio ar, pois só existes enquanto contador, já eu habito-me nele e com ou sem história sou obrigado a ver porque lhe sinto as lágrimas e porque lhe vivo nos olhos)
…Fechou a porta. Nunca à chave. Apenas no trinco. Mania ou crença de menino, pois acreditava que se fechasse apenas no trinco era obrigado a voltar, nem que fosse só para a fechar a sete voltas.

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