Aviso ao navegante distraído

estou atentar construir uma estória, através de um ou dois narradores que encontri por aí. A ideia é imprimir um rimo de escrita ao sabor das ideias em redor de uma personagem.
Quem aqui vier parar não deve considerar isto um blog, pelo que para entender o ultimo post terá que ler os anteriores, mas para isso terá que ter uma gigantesca paciência!

5.

Hoje decidira andar, sem parar pelas ruas da cidade, queria olhar as pessoas, entrar dentro delas. Vasco tinha uma forma estranha de comunicar e de se ouvir. Dialogava no silêncio com cada um que se lhe atravessava no caminho. Primeiro imaginava uma estória para cada rosto que lhe produzia sentires, Depois despejava conversas sem fim numa empatia estonteante. Nem todos serviam, para lhe estimular os diálogos imaginários, Normalmente era idosos, crianças ou mulheres, Nos idosos eram as rugas e o olhar que lhe provocavam as vozes, nas crianças o sorriso, nas mulheres era mais selectivo, porque necessitava de um maior numero de sinais, mais que os olhos, mais que o corpo, ou o movimento, Mulheres cuja beleza ficava a pairar como um perfume. Gostava de sentir a beleza a flutuar no olhar, frágil como uma flor ( como o "polén da asas" de uma borboleta?). A beleza invariavelmente encantava-o e provocava-lhe o desenho, ficava tão presente no olhar que se sentia impelido a roubar as linhas do desenho, numa atitude contemplativa e sensual, como quem olha uma ave do paraíso que voa indiferente ao Universo, e não sabe se há-de fixar as cores, o som ou a harmonia do voo… Degustava sem engolir ( sem possuir) até tudo se evaporar na conversa que se perdia na memória… Vasco sabia que era uma forma bizarra de se deixar levar pelos passos nas ruas da sua cidade. O mundo imaginário que fervilhava dentro dele, era uma ilusão de vidas que se confundiam no seu próprio eu, mas que o consolavam e o serenavam. Era um jogo sem regras no qual ele se permitia ser verdadeiro e sem máscaras. Precisava deste exercício para poder suportar o dia a dia que se esvaziava sem sentido.

4.

Agora tudo mudara, e Vasco vivia intensamente essa mudança. A sua Cidade…

( como ele gostava de a sentir sua, de a respirar de lhe dar formas)

…parecia ter aodormecido numa espécie de bruma sebastianina, como se o silêncio a empurrasse para um abismo suspenso.

( cenário exagerado, Vasco sabia-o pois aprendera na vida que o tempo era coisa relativa e que a memória da história era coisa volátil, mas isso não o impedia de manter viva a sua enorme irritação).

Via e sentia a Cidade como um bonsai. Desenhava-se uma forma e depois com o cuidado de um fiel jardineiro esculpia-se o destino do seu crescimento, podando aqui e ali, num jogo de paciências e de dedicação. Percebera que isso era uma utopia, que dependia mais dos donos do destino que da vontade do jardineiro, mas como era teimoso acreditava no que fazia e lutava até ao limite das suas convicções . Ainda se recordava do prazer que tinha tido em liderar uma equipa onde participou o Arquitecto Jacinto Morais e das horas sem fim que tinham dedicado a elaborar o plano de urbanização da cidade, sem estarem preocupados, com o cadastro existente. Sabia que tinha sido uma provocação aos interesses instalados, uma autêntica declaração de guerra ás empresas de construção que tinham hábito de se considerarem senhoras das cidades, por todos dependerem dos seus investimentos e das suas contas bancárias e aos proprietários de terrenos, outrora cintura agrícola do núcleo urbano e que hoje, fruto de um ordenamento estranho, elaborado em épocas de anarquia institucional tinha-os transformado de pobres herdeiros rurais a potenciais milionários urbanos. Vasco sabia que muito do Novo-riquismo e do Novo-politiquismo citadino, tinha a génese num período estranho da história recente em que se confundiu liberdade com libertinagem e que em nome do colectivo se olhava apenas para o umbigo de cada um. Afrontar esta colmeia ruidosa, cujos feudos e poder se diluíam numa rede de murmúrios secretos, cimentados nas trocas de favores ou em chantagens subtis, era tarefa dolorosa que só com determinação se conseguia avançar.

3.

Estava indeciso. Não sabia se queria ir trabalhar. Precisava de férias. Dois ou três dias bastavam. Na praia ou em qualquer sito em que se misturasse na multidão e se isolasse dela.
(Alerta-se o leitor para as contradições de Vasco. É um eterno solitário que simultaneamente procura companhia e se isola dela, com tédio. Alimenta a dor de se sentir só e afasta-se de tudo e de todos, entrando num ciclo paranóico de aproximação e de fuga. A necessidade de se isolar é genuína. Sabemos já que é um cobarde, no dia a dia, na informalidade com os amigos, quase os não olha de frente, mas na labuta do trabalho, chega a ser incomodativa a persistência do seu olhar, durante uma discussão ou numa simples reunião. Ele acha-se um esquizofrénico, por isso alimenta a multiplicidade de eus, como quem abre e fecha uma gaveta, num processo de alienação simples e eficaz…cá para nós que o vemos por dentro e por fora, uma esponja que absorve as várias facetas as mil verdades, dependendo de como as olha. Para terem a certeza do que vos digo tomo a liberdade de transcrever o que Vasco escreveu antes de se deitar no seu caderno de apontamentos…
… “Quem se ilude que há uma só verdade, perdeu o ponto. A vista. Ela está em cada reflexo, em cada olhar em que se Acredita!
A Verdade existe em cada um que a ACREDITA.
A Única, a UNA, essa é intensa e cega, não se olha de frente, porque Todos não a conseguem olhar do mesmo Ponto, e cada um sabe-a, desde que a Sinta”…

Mas deixemos o Vasco decidir os passos. Os remorsos impeliram-no para o trabalho e é aí que retomamos o fio da «estória»… )

Deixara o carro na garagem e subia lento a rampa. Raramente saía pela porta. Utilizava amiúde a rampa de subida reservada ás viaturas.
( infância irrequieta, diria eu que o observo desde que nasceu. Não era só não ligar ás normas, gostava de as contrariar, como que a guerrilhar-se a si próprio, numa tentativa permanente de esconder o medo paralisante que lhe inibiam a ousadia, voluntária e espontânea . A quebra das pequenas regras faziam-no acreditar que era diferente, que não era marioneta e que imprimia sentido aos passos. Ia ao extremo de treinar insistentemente, escrever ou desenhar, com a mão esquerda. Os progressos diários faziam-no sorrir, e em escassos instantes sentia uma profunda felicidade e um imensurável triunfo sobre si próprio.)
...Há dois anos, desde as ultimas eleições autárquicas que deixara de ir directo ao gabinete do presidente da Câmara, A presidência mudara e não sentia pelo actual presidente nem simpatia nem empatia. Não lhe reconhecia autoridade porque sentia pura e simplesmente que não a tinha. Tinha saudades das conversas e do trabalho que desenvolvera com Aníbal, Aníbal Santos, um independente elitista com dotes populares que possuía uma invejável inteligência prática. Teimoso no limiar do insuportável conseguia implementar as suas ideias com uma oposição velada a conspirar invejas, no partido que o apoiara e fora dele. Politico puro que sabia entusiasmar a sua equipa de trabalho, escolhida a dedo, como quem constrói um exército à medida de cada missão. Terminada a missão, outra equipa surgia. Frio, pragmático, era um general que construía a sua cidade, ao seu gosto e à sua vontade. Poucos gostavam dele. Vasco gostava, mesmo não concordando com ele, mas o facto de se sentir parte de uma equipa empreendedora, compensava os desencontros. Actualmente os desencontros eram outros e esses sim magoavam-no e liquidavam a seu enorme voluntarismo para a causa pública. Não tolerava indecisos…
( para isso bastava o combate diário e implacável que desenvolvia no seu íntimo. Já era desgastante contrariar a suas mil indecisões, quanto mais esbarrar com alguém que mostrava uma incapacidade notória para filtrar essas indecisões.)

2.

Bebia o café com leite ainda com os pensamentos em névoa, desfocados, Enroscava-se ainda no lado de lá da fronteira, receoso da rotina que se instalara nos últimos meses no seu quotidiano. Não tinha feitio para aquilo. Fechar uma empresa era dos diabos. Trabalho desumano, desnaturo…
( mas que mania esta de sublinhar as palavras com duplicados, assim não escondes a incapacidade de decidires, Continuas imaturo, eu teria apenas escolhido desnaturo, mas tu que escreves lá sabes, apesar da «estória» ser minha, Isto sim convém repetir de vez em vez, não vás tu pensar que lá por teres entrado ma minha intimidade tomaste conta dela).
…Levara anos a formar a equipa, a moldá-la a criar empatias. Sabiam todos que a empresa tinha um tempo limitado de existência, fora criada pelo Estado para cumprir um determinado objectivo, num também determinado espaço temporal. Coisa mal estruturada que como tudo só funciona à base da teimosia de poucos, mas coisa comum não só na causa publica, mas que se foi instalando no espírito empreendedor «do desenrasca» tão sistematicamente repetido que se criou a ilusão de sermos assim de facto. Mas na verdade só o somos porque temos tendência para a ignorância. O saber implica sacrifício e persistência, o instinto é mais fácil e resulta muitas vezes. Vasco era perito na improvisação, tinha repulsa por um planeamento militar, excessivamente meticuloso. Era um criativo e mesmo na área da gestão,
(não fosse ele engenheiro, para baralhar ainda mais o seu perfil profissional e emotivo),
era adepto empenhado do improviso. Sabia que trabalhar para políticos obrigava a uma grande elasticidade de procedimentos. Fazer crer que era o politico o decisor de uma determinada acção pública era uma arte de gestão psicológica que ele geria com mestria. Divertia-se na arte da indução. Por vezes levava tempo, mas era persistente e sabia o que queria. Se não dava á primeira daria nem que fosse á vigésima, mas sabia recuar quando se via encurralado na teimosia alheia.
Estes últimos dias tinham sido dolorosos, almoços de despedida, recordações revividas, «estórias»…
( está a gostar de escrever «estórias» em vez de história? Não te costumas dar liberdades dessas, cá para mim andaste a ler o Matoso, que guarda a História para a História de um povo e a «estória» para a vida de um homem? Confessa!)
( Confesso!),
…contadas e recontadas. Estava exausto. Física e emocionalmente perdido. Consumido em sentires e em silêncios.
( Porque não foges? Andas sempre a fugir, é boa altura esta, desapareceres e recomeçares…

(Digamos que foi um aparte oportuno, era isso que Vasco sentia, uma permanente vontade mascarada em impulso de fugir )
…Geria mal o silêncio da angustia. Quando se sentia isolado entre os vidros do carro, gritava a sua dor , numa melodia a arranhar o fado. Gostava de fado. Da Voz da guitarra, mais do que a voz do poema. Era a sua forma de gritar, O som da guitarra. Costumava dizer ( ou pensar?) que o som da guitarra era uma lágrima em forma de musica.

1.

Levantou-se, com a lentidão da memória que insistia em sonambular por sonhos inacabados. Custava-lhe abrir os olhos, mesmo na penumbra de um quarto que o embalava desde menino…
(Caro leitor, o narrador, é um chato. Considere isto um aviso prévio antes de deambular pela história. É um intrometido. Insiste em começar uma história com um acordar…mania tonta, quase infantil, mais valia o tradicional «era uma vez», mas não, apanha o personagem ainda estremunhado e invade-lhe a intimidade, entra nele e nunca mais o larga).
…desde que se lembra que se recusa a acordar. Gosta da lentidão do olhar, de se sentir entre fronteiras, e não pertencer a qualquer dos lados. Cobarde? Sim! Assumidamente cobarde, O que o salva é a vergonha, Não fosse ela, e seria um ser desprezível. Não a vergonha dos outros, Estava-se nas tintas para os outros, mas a que ele sentia dentro do peito a doer-lhe como agulhas finas a trespassarem-lhe o sabugo das unhas. Não gostava do espelho! Raramente sorria quando se olhava reflectido. Era um estranho, Não ele, mas o que se duplicava invertido. Um e outro divergiam, como se um, fosse o fantasma esquizofrénico do outro. Para fugir desta espécie de sombra que o perseguia à velocidade dos passos, Vasco tinha o hábito de se compartimentar em «pedaços de eus» vagueantes e difusos. Só ele conhecia a chave que os aglutinava…
(O personagem tenta fugir ao narrador e surpreendê-lo com confissões pouco coerentes. Deixemos por agora que ele desperte do sono, que acorde. Criemos a ilusão que é ele que abre a janela e que não é a história que a abre …
…mas afinal quantos narradores tem este enredo? Ou não há enredo algum e aguardam um e outro que a história se diga sem interferências de terceiros?)
…Vasco ainda mal acordou, dirige-se molengo ao frigorifico para se refrescar da noite quente que se lhe colou á pele e que só um copo de leite gelado a descola. Dói-lhe a cabeça, Passou a noite em pensamentos inconsequentes, imagens desconexas que não lhe indicavam solução nenhuma para a sua vida que de um momento para o outro se complicara e se afunilava na indecisão. Tinha quarenta e cinco anos, sempre trabalhou por gosto sem pensar em futuros, pois era o dia a dia que o entusiasmava. Engenheiro-Gestor, estava habituado a ser criativo e a motivar os seus colaboradores, numa competitividade sã, numa labuta em que se divertiam ao ponto de se esquecerem de almoçar ou jantar. Mas tudo mudara de um momento para o outro, como se uma onda tivesse surgido do mar calmo sem razão aparente nem sinais outros que dessem o alerta. Sentia o seu mundo desmoronar. Porque razão o abanavam assim? Sempre tivera bom senso, sempre encarara a vida com serenidade, porque desabava agora tudo debaixo dos seus pés? Logo agora que ele tinha decidido abrandar, logo agora que começara a olhar um pouco para ele, era empurrado para um abismo sem fim, sem sequer darem-lhe tempo para colocar um pára-quedas ? Onde iria ele cair? Como lhe doía a cabeça. Sempre as malditas dores de cabeça a obrigá-lo a sentir o corpo. Raios partissem o corpo todo de vez só. Arrancados os olhos e tudo seria mais calmo. Sem cor é certo, mas mais calmo.
Apertava a gravata, de cor só , lisa , discreta. Escura. Azul quase sempre. Ainda «sonolava,» mas já sentia o dia a respirar. Ainda estava á procura das chaves e já se sentia no caminho. O mesmo caminho de vinte anos numa ida e vinda rotineira, vezes de comboio, quase sempre de carro. Gostava desse momento. Era o seu momento. Era a parte do dia que era só dele. Trabalhava numa cidade costeira, dormia noutra rodeada de serras. Gostava de ambas e detestava-as em igual medida. Quando estava na sua cidade de trabalho só pensava na ida. Na serrana o mesmo. Estivesse onde estivesse era um insatisfeito irrequieto. Não tinha raízes por isso se sentia livre de amar e de odiar a seu belo prazer, os sítios que pisava. O pai chamava-lhe vagabundo. Ele sentia-se um tuaregue cosmopolita. Alimentava um impulso constante para a fuga, escondida numa necessidade doentia da descoberta. ( quantas vezes visitava uma cidade só da janela do hotel? E no entanto, ali defronte da cidade-nova tinha a sensação clara que ia em descoberta de novos cheiros, de novas gentes . Vezes havia que andava pelas ruas até se cansar, até não saber voltar, só para ter a sensação de se sentir perdido e de mergulhar na aventura de encontrar o seu caminho. Fazia isso em tudo na vida…provocar a sensação de descoberta, mesmo das coisas mais simples…era assim que se maravilhava…
( Muito bonito sim senhor, mas por isso, atrofiava a memória, qualquer dia é obrigado a descobrir como se respira…já faltou mais, e quando isso acontecer, adeus Vasco, ficarás preso na tua própria teia, trucidado pela estúpida obsessão de quereres inventar o mundo)
…mas afinal o que é que pretendes contar…as confissões de Vasco? Isso tem algum interesse? Como é que a história de alguém que se julga um tuaregue solitário, a viver num cidade de província pode ter interesse algum? Nem para o próprio!)
( Vamos lá a ver se nos entendemos, ó narrador de tigela inteira, ou contas tu ou conto eu. Os dois é que não dá. O Vasco é coisa minha, a história dele é coisa tua, limita-te a contá-la. Deixa que ela seja o teu próprio ar, pois só existes enquanto contador, já eu habito-me nele e com ou sem história sou obrigado a ver porque lhe sinto as lágrimas e porque lhe vivo nos olhos)
…Fechou a porta. Nunca à chave. Apenas no trinco. Mania ou crença de menino, pois acreditava que se fechasse apenas no trinco era obrigado a voltar, nem que fosse só para a fechar a sete voltas.